2016년 9월 22일 목요일

a mao e luva 11

a mao e luva 11



A moça ficou algum tempo quieta, a olhar para o papel, sem o querer
ler, como a hesitar entre queimal-o ou restitui-lo intacto a seu autor.
Mas a curiosidade venceu por fim; Guiomar abriu o papel e leu estas
linhas:
 
«Guiomar! Perdoe-me se lhe chamo assim; as convenções sociaes
condemnam-me de certo, mas o coração approva, que digo? elle mesmo
escreve estas letras. Não é a minha penna, não são os meus labios que
lhe falam deste modo, são todas as forças vivas da minha existencia,
que em alta voz proclamam o immenso e profundo amor que lhe tenho.
 
«Antes de o ler neste papel, já a senhora o hade ter visto, pelo menos
adivinhado nos meus olhos, na doce embriaguez que em mim produz a
presença dos seus. Persuado-me de que todo o meu esforço em recalcar
este affecto é vão; por mais que eu sinceramente deseje esquecel-a,
não o alcançarei nunca; não alcançarei mais que uma afflição nova. O
remorso de o tentar virá coroar os demais infortunios.
 
«Porque razão rompo hoje o silencio em que me tenho conservado, medroso
e respeitoso silencio que, se me não abre a caminho da gloria, ao menos
conserva-me a palma da esperança? Nem eu mesmo saberia responder-lhe;
falo, porque uma força interior me manda falar, como trasborda o rio,
como se derrama a luz; falo porque morreria talvez se me calasse, do
mesmo modo que morrerei de desespero, se além do perdão que lhe peço,
ma não der uma esperança mais segura do que esta, que me faz viver e
consumir.--Jorge.»
 
Guiomar leu esta carta duas vezes, uma leitura de curiosidade, outra
de analyse e reflexão, e ao cabo da segunda achava-se tão fria como
antes da primeira. Olhou algum tempo para o papel e mentalmente para o
homem que o havia escripto; emfim, poz a carta de lado, abriu o livro e
continuou o romance.
 
Mas o espirito, que não ficara tão indifferente como o coração, entrou
a fugir-lhe do romance para a vida com tal tenacidade que não houve
remedio senão irem os olhos atraz delle, e a moça de novo mergulhou nas
reflexões que lhe suggeria o caso da paixão de Jorge.
 
Paixão não era,--não o seria ao menos no sentido inteiro do vocabulo;
mas alguma cousa menos, ou parecida com ella, e ainda assim verdadeira,
via bem Guiomar que o poderia ser. Até que ponto chegaria entretanto,
o seu adorador, se ella o desattendesse logo; e, dado o amor que a
baroneza tinha ao sobrinho, até que ponto a recusa iria magoal-a?
Guiomar varreu do espirito os receios que lhe nasciam de taes
interrogações; mas sentiu-os primeiro, pezou-os antes de os arredar de
si, o que revelará ao leitor em que proporção estavam nella combinados
o sentimento e a razão, as tendencias da alma e os calculos da vida.
 
Excluido o receio, voltou-lhe o riso, aquelle riso interior, que é o
mais involuntario e cruel, e tambem o menos arriscado que a gente póde
dar ás fatuidades humanas. Não podia ser tão despresivel assim o amor
de um homem, cuja ridiculez compensavam algumas qualidades boas, e que
emfim era tambem distincto, ainda que a sua distincção primasse antes
por um estylo rendilhado e complicado, que não é o melhor. Guiomar via
tudo isso, e por outro lado, não podia obstar que elle a amasse; nem
por isso achava menos temeraria aquella confissão.
 
A moça reflectia tambem na posição especial que tinha naquella casa
o sobrinho da baroneza; via-se obrigada á presença delle, e talvez
á luta, porque o pretendente não recuaria do primeiro golpe. Não
havia taes receios da parte de Estevão; ella reconhecia que a paixão
deste era ardente e profunda, e por isso mais capaz de desatinos; mas
comparava as indoles dos dous homens, e se ambos lhe pareciam de fraca
compleixão moral, nem por isso desconhecia que ao bacharel faltava
certa presumpção que distinguia o outro, e com a qual teria talvez de
pelejar.
 
Quando ella fez esta comparação entre os dous homens, ficaram-lhe os
olhos um pouco mais molles e quebrados, obra de tres minutos apenas,
mas tres minutos que, se Estevão soubera delles, trocaria por elles
o resto de toda a vida. E comtudo, não era amor nem saudade; alguma
sympathia, sim, ainda que leve e sem consequencia; mas sobretudo era
pena de o não poder amar,--ou ainda melhor--era lastima de que tal
coração não fora casado a outro espirito.
 
Guiomar reflectiu ainda muito e muito, e não reflectiu só, devaneou
também, soltando o panno todo a essa veleira escuna da imaginação, em
que todos navegamos alguma vez na vida, quando nos cança a terra firme
e dura, e chama-nos o mar vasto e sem praias. A imaginação della porém
não era doentia, nem romantica, nem piegas, nem lhe dava para ir colher
flores em regiões selvaticas ou adormecer á beira de lagos azues. Nada
disso era nem fazia; e por mais longe que velejasse levaria entranhadas
na alma as lembranças da terra.
 
Volveu emfim e olhos cairam-lhe na carta. A realidade presente não se
lhe podia mostrar de peor modo. Guiomar ergueu-se irritada, lançou mão
do papel e machucou-o febrilmente; ia talvez rasgal-o, quando ouviu
bater de manso á porta.
 
--Quem é? perguntou.
 
--Sou eu, respondeu a voz de Mrs. Oswald.
 
A moça foi abrir a porta; a ingleza entrou, trajada de dormir, e um
vivo espanto nos olhos, que pareceu tirar-lhe a voz durante alguns
segundos. Guiomar assustada perguntou:
 
--Que é? aconteceu alguma cousa a minha madrinha?
 
--Longe vá o agouro! exclamou a ingleza. Não lhe aconteceu nada; a
senhora baroneza dorme naturalmente a somno solto. Venho porque do meu
quarto pareceu-me ouvir rumor de passos aqui, e depois vi luz. Pensei
que tivesse algum incommodo. Mas, pelo que vejo, continuou a ingleza
deitando os olhos para a mezinha em que pousava o livro aberto,--pelo
que vejo ainda não acabou de ler o seu romance...
 
--Não li ainda uma linha, depois que me recolhi, respondeu Guiomar
cravando os olhos no rosto da ingleza, como tomada de um pensamento
subito.
 
--Deveras!
 
--Li outra cousa, continuou a moça; li este papel.
 
Mrs. Oswald inclinou-se para ler também o papel, que aliás adivinhou
qual fosse; Guiomar atirou-o sobre a mesa.
 
--Não precisa, disse ella; é uma declaração amorosa.
 
--De quem? perguntou a ingleza abrindo uns olhos espantados e
obedientes.
 
--Leia o nome.
 
Mrs. Oswald leu a assignatura da carta, que a moça do novo lhe
apresentava.
 
--Naturalmente, continuou Guiomar, ha nisto obra sua...
 
--Minha! interrompeu a outra um pouco mais rispidamente do que
costumava falar.
 
Guiomar tinha ido sentar-se; o pésinho impaciente batia no tapete, com
um movimento rapido e regular; cruzára os braços sobre o peito, fitando
a ingleza com uns olhos em que se podia ler a viva exacerbação do
espirito. Seguiu-se curto silencio; Mrs. Oswald puxou outra cadeira e
sentou-se perto da moça.
 
--Por que ha de ser injusta commigo? disse ella dando á voz um tom
mellifluo e supplicante; porque não ha de ver as cousas, como ellas
naturalmente são? O que ha nisto é uma coincidencia curiosa, mas nada
mais. Se lhe falei em semelhante cousa algumas vezes, foi porque eu
mesma percebi o amor que lhe tem o Sr. Jorge; é cousa que todos veem.
Imaginei que o casamento, neste caso, seria agradavel á Sra. baroneza a
quem sou grata. Posso ter feito mal...
 
--Muito mal, interrompeu Guiomar; são cousas de familia em que a
senhora nada tem que ver.
 
Guiomar levantou-se outra vez, deu alguns, passos, e voltou a
sentar-se. Com o movimento desprenderam-se-lhe os cabellos e cairam-lhe
sobre os hombros. Mrs. Oswald approximou-se della para os colher e
atar, mas a moça seccamente a repelliu:
 
--Deixe, deixe...
 
E ella mesma os recompoz com as suas mãosinhas finas, e ficou depois
a olhar para o chão, a morder o labio, a respirar fortemente, como se
contivera a palavra que forcejava por sair impetuosa e colerica. Mrs.
Oswald não disse nada durante alguns minutos; esperou que passasse o
periodo agudo da irritação. Quando lhe pareceu que ella afrouxava,
rompeu emfim o silencio.
 
--Fiz mal, fiz não ha duvida, mas a intenção não podia ser melhor.
Talvez não me creia; paciencia! O que lhe peço,--nem lhe peço,--o que
eu acredito piamente é que não me hade attribuir algum interesse de
ordem...
 
Mrs. Oswald fez uma pausa para dar aberta ao protesto de Guiomar,
mas Guiomar não protestou, quero dizer não protestou de viva voz;
fez apenas um gesto negativo, bastante a satisfazer os melindres
da ingleza. A moça foi sincera; não attribuia realmente a nenhum
interesse vil,--pecuniario,--a acção de Mrs. Oswald. Nem por isso a
absolvia,--não só porque ella viria concorrer talvez para uma crise
penosa, mas também,--bom é notal-o outra vez,--porque a condição da
ingleza naquella casa era relativamente inferior.
 
A ingleza continuou a falar em defeza propria, a justificar miudamente
os bons sentimentos do coração, e a prometter que deixava por mão todo
aquelle negocio, a seu juizo, o melhor que a moça podia fazer.
 
--A experiencia da vida, concluiu ella, devia ter-me convencido de que
o melhor de todos os sentimentos é um egoismo quieto e calado.
 
Em quanto ella falava assim, Guiomar parecia volver a tranquilidade
habitual. A mudança foi,--não súbita,--mas um pouco mais rapida do
que devera ser, tratando-se de um espirito, como o della, em que as
impressões não eram superficiaes nem momentaneas. Havia até uns toques
de affabilidade no rosto e na voz, quando ella começou, a falar, o que
revelaria talvez ser aquella mudança muito voluntaria e meditada.
 
--Está bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou. Sinto que as cousas
chegassem a este ponto, e que elle se lembrasse de escrever semelhante
carta, confessando uma paixão que acredito sincera, mas a que o meu
coração não póde corresponder. Amores não se encommendam como vestidos:
sobretudo não se fingem, ou não se devem fingir nunca.

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