2016년 9월 23일 금요일

a mao e luva 18

a mao e luva 18



Estevão sentiu arrasarem-se-lhe os olhos d'agua. Quiz falar, mas as
palavras iam-lhe saindo envoltas em soluços.
 
Luiz Alves fumava tranquillamente, acompanhando com os olhos os
rolinhos de fumo que lhe fugiam da ponta do charuto. Este silencio
durou cerca de dez minutos. O mar batia compassadamente na praia. A voz
da onda e o latido de um cão ao longe eram os unicos sons que vinham
quebrar a mudez daquella hora solemne para um desses dous homens que ia
perder até o repouso da esperança.
 
Estevão foi o primeiro que falou:
 
--Ama a outro, não é? perguntou elle com a voz tremula.
 
--Ama, respondeu surdamente Luiz Alves.
 
Estevão ergueu-se e deu alguns passos na sala, sem dizer palavra, a
morder a ponta do bigode, parando ás vezes, outras traduzindo com um
gesto desordenado os sentimentos que lhe tumultuavam no coração. A dor
devia ser grande, mas a manifestação já não era a mesma que o leitor
lhe viu, dous annos antes, quando elle foi confiar ao amigo o primeiro
desengano de Guiomar.
 
--Parece-me que eu adivinhava isto mesmo, disse elle, emfim, parando
em frente de Luiz Alves. Este desejo que me accometteu de vir aqui, a
este hora, sem certeza de encontrar-te, era mais um beneficio do meu
destino. Devia esperal-o. Que vida tem sido a minha, Luiz! Agarrei-me,
nem sei por que, á esperança de ser amado por ella, de a vencer pela
piedade, ou pelo remorso, ou por qualquer outro motivo que fosse,--o
motivo importava pouco... O essencial é que ella me pagasse em ternura
e amor todas as dores que curti, as lagrimas todas que tenho devorado
em silencio... E era so essa esperança que ainda me dava forças... que
me fazia crer feliz, como pode sel-o um desgraçado, como podia sel-o
eu, que nasci debaixo de ruim estrella.... Oh! se tu souberas... Não,
não sabes, nem ella tambem, ninguem sabe nem saberá nunca tudo quanto
tenho padecido, tudo quanto....
 
Interrompeu-se. Duas lagrimas, espremidas do fundo do coração,
saltaram-lhe dos olhos e desceram-lhe rapidas a perder-se entre os
cabellos raros e finos da barba. Elle sentiu que outras podiam vir, e
foi sentar-se n'um sophá, meio voltado de costas para Luiz Alves. As
outras vieram, porque o coração ainda as tinha para as dôres supremas;
mas correram-lhe silenciosas, sem um soluço, sem uma queixa unica.
 
Luiz Alves lavantara-se e chegara á janella. Seu espirito, apezar de
frio e quieto, parecia agora um pouco alvoroçado. Não era dor; e não
sei se lhe podia chamar remorso. Mau-estar apenas, e commiseração.
O coração era capaz de affeições; mas, como ficou dito no primeiro
capitulo, elle sabia rege-las, modera-las e guia-las ao seu proprio
interesse. Não era corrupto nem perverso; tambem não se póde dizer
que fosse dedicado nem cavalheresco; era, ao cabo de tudo, um homem
friamente ambicioso.
 
Estevão levantara-se outra vez e pegara no chapeu.
 
--Vem cá, disse Luiz Alves entrando e indo ter com elle; vejo que estás
mais homem do que antes. Resta o que sejas completamente; varre da
memoria e do coração tudo o que possa referir-se...
 
--Que remedio! interrompeu Estevão sorrindo amargamente; que remedio
tenho eu se não esquece-la! Mas quando?
 
--Mais breve talvez do que suppões...
 
Luiz Alves não acabou; Estevão olhara para elle com um gesto de espanto
e fora sentar-se outra vez.
 
--Mais breve do que supponho! exclamou elle. Tu não tens coração: não
tens sequer observação nem memoria. Não vês, não sentes que esta paixão
é o sangue do meu sangue, a vida da minha vida? Esquece-la! Era bom
se eu a pudesse esquecer; mas a minha má sina até essa esperança me
arranca, porque este padecer intimo, constante, ha de ir commigo até á
morte...
 
Desta vez era Luiz Alves que passeava de um lado para outro. Em seu
espirito despontava uma ideia, que elle examinava, a ver se a poria
alli mesmo em execução. Era dizer-lhe tudo. Estevão viria a sabel-o
mais tarde; melhor era que o soubesse logo e por elle. Ao mesmo tempo
reflectia na exaltação dos sentimentos do rapaz; a dor certamente se
lhe aggravaria, em sabendo que era elle o preferido de Guiomar. O
coração, que perdoaria a um extranho, condemnaria ao amigo.
 
Estevão, assentado, com os olhos no tecto, parecia entregue ás suas
reflexões, mas só parecia, por que elle não pensava, evocava antigas
memorias, fazia surgir diante de seus olhos a figura gentil de Guiomar,
sentia-lhe o imperio dos bellos olhos castanhos, ouvia-lhe a palavra
doce e avelludada entornar-se-lhe no coração. Não evocava só, creava
tambem, pintava com a imaginação a felicidade que lhe poderia dar a
moça, se entre todos os homens o escolhera, se elles dous vinculassem
os seus destinos. Elle via-a ao pé de si, cingia-lhe o braço em volta
da cintura, enchia-lhe de beijos os cabellos, tudo isto em meio de uma
paisagem unica na terra, porque a abundancia da natureza cresceria ao
contacto daquelle sentimento puro, casto e eterno. Não falo eu, leitor;
transcrevo apenas e fielmente as imaginações do namorado; fixo nesta
folha de papel os vôos que elle abria por esse espaço fóra, unica
ventura que lhe era permittida.
 
No meio dessas visões foi accordal-o Luiz Alves.
 
--Tens razão de sentir, disse este; mas não gastes o coração, que ha
maiores sorpresas na vida... Em todo o caso, deixa-me dizer-te que
nenhuma razão tens de censura...
 
--Censuro eu alguém?
 
--Ha no amor um germen de odio que póde vir a desenvolver-se depois.
Talvez chegues a accusala de te não querer; nesse dia reflecte que os
movimentos do coração não estão nas mãos da vontade. Ella não tem culpa
se outro lhe despertou o amor.
 
--Ah! incumbiu-te da defesa!
 
Luiz Alves sorriu; elle contava com a recriminação.
 
--Não, não me incumbiu da defesa, disse elle; sou eu que a tomo por
minhas mãos. Que defendo eu aqui se não a natureza, a razão, a logica
dos sentimentos, dura e inflexivel como toda a outra logica? Ha no
fundo das tuas palavras um sentimento de egoismo...
 
--O amor não é outra cousa, respondeu Estevão sorrindo por sua vez.
Queres que inda em cima lhe agradeça este desespero? Queres que vá
apertar a mão ao homem que a soube vencer?
 
Luiz Alves mordeu a ponta do labio e acercou-se da janella. Quando ia
a voltar para dentro ouviu um rumor na janella ao pé, a primeira da
casa da baroneza. Luiz Alves deu um passo mais. Não viu ninguem; viu
apenas o resto de um vestido que fugia e um objecto que lhe caia aos
pés. Inclinou-se a apanhal-o. Era uma grande folha de papel envolvendo,
para lhe dar mais peso, outra folha pequena dobrada em quarto. Luiz
Alves aproximou-se da luz, e leu rapidamente o que alli vinha escripto.
Leu, metteu o papel na algibeira e encaminhou-se disfarçadamente para a
janella. Ninguem; a casa da baroneza dormia.
 
Quando voltou para dentro, Estevão tinha-se levantado. Elle vira cair
o papel, apanhal-o e lel-o Luiz Alves. Não entendeu nada do que se
passara; mas seu olhar como que pedia uma explicação.
 
Luiz Alves foi direito ao fim.
 
--Estevão, disse elle, vás saber a verdade toda; não poderia
occultar-te o que se ha passado, nem conviria talvez que tu a soubesses
por boca de outro. Guiomar podia amar-te, eras digno della, e ella
digna de ti; mas a natureza não os fez um para o outro. São duas almas
excellentes que seriam infelizes unidas. Quem ha aqui que censurar?
Mas se a natureza explica o sentimento della, egualmente explica o de
um terceiro, que sou eu. Tu confiaste-me as dores e as esperanças de
teu coração; era conhecer toda a minha amisade e a profunda estima que
sempre te consagrei. Mas nem tu nem eu contavamos commigo; por que
tambem eu tenho coração, e os prestigios da belleza tambem falam á
minha alma. Não a pude ver a frio. A paixão obscureceu-me. Nesta minha
felicidade de amar e ser amado, acredita que sou alguma cousa infeliz,
por que ha lagrimas tuas, ha o teu padecer longo e cruel, que eu
imagino e deploro. A confissão é franca; não te falo em arrependimento,
porque são actos do coração e não da consciência, que essa é pura e
honrada. E depois desta exposição fiel, cuido que lastimarás commigo o
encontro em que o acaso ou a má sorte nos reuniu a todos tres; mas não
me accusarás nem me recusarás a tua velha estima. Falo só da estima; a
amisade, creio que não poderá ser a mesma. Mas presarás o meu caracter.
Pela minha parte, nem uma nem outra cousa perece; sei o que vales. Não
sei aonde nos lançará a onda do destino amanhã. Pela ultima vez, porém,
espero que apertarás a mão do teu amigo.
 
Luiz Alves concluíra estendo-lhe a mão. Estevão olhou para elle, mas
não disse uma só palavra, não fez um gesto unico: caminhou para a porta
e saiu.
 
--Estevão! gritou Luiz Alves.
 
Mas só lhe respondeu o rumor dos pés que desciam, e pouco depois o do
tilbury que rolava surdamente na terra humida da praia.
 
Luiz Alves levantou seccamente os hombros; chegou-se á luz e releu o
escripto.
 
 
 
 
XVII
 
 
A carta.
 
 
Não era preciso reler o papel para entendel-o; mas olhos amantes
deliciam-se com letras namoradas. O papel continha uma palavra
unica:--_Peça-me_,--escripta no centro da folha, com uma lettra fina,
elegante, feminina. Luiz Alves olhou algum tempo para o bilhete,
primeiramente como namorado, depois como simples observador. A lettra
não era tremula, mas parecia ter sido lançada ao papel em hora de
commoção.
 
Desta observação passou Luiz Alves a uma reflexão muito natural.
Aquelle bilhete, pouco conveniente em quaesquer outras circumstancias,
estava justificado pela declaração que elle proprio fizera á moça
alguns dias antes, quando lhe pediu que o conhecesse primeiro, e que
no dia em que o julgasse digno de o tomar por esposo, elle a ouviria e
acompanharia. Mas se isto era assim em relação ao bilhete, não o era em
relação á hora. Que motivo obrigaria a moça a deitar-lhe da janella, á
meia noite, aquelle papel decisivo, eloquente na mesma sobriedade com
que o escrevêra?
 
Luiz Alves concluiu que havia alguma razão urgente, e portanto, que
era preciso acudir á situação com os meios da situação. Quanto á razão
em si, não a pôde descobrir. Occorreu-lhe o facto, aliás patente, da
côrte que o sobrinho da baroneza fazia a Guiomar, mas ignorava as
circumtancias que lhe eram relativas, e não pôde passar além.

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