2016년 9월 22일 목요일

a mao e luva 3

a mao e luva 3


Posto fizesse boa figura na academia, mais presava do que amava a
sciencia do direito. Suas preferencias intellectuaes dividiam-se, ou
antes abrangiam a polilica e a litteratura, e ainda assim, a politica
só lhe acenava com o que podia haver litterario nella. Tinha leitura de
uma e outra cousa, mas leitura veloz e á flor das paginas. Estevão não
comprehendería nunca este axioma de lord Macaulay--que mais aproveita
digerir uma lauda que devorar um volume. Não digeria nada; e dahi vinha
o seu nenhum apego ás sciencias que estudara. Venceu a repugnancia por
amor proprio; mas, uma, vez dobrado o cabo das Tormentas disciplinares,
deixou a outros o cuidado de aproar á India.
 
Suas aspirações políticas deviam naturalmente morrer em germen, não só
porque lhe minguava o apoio necessario para as arvorecer e fructificar,
mas ainda por que elle não tinha em si a força indispensavel a todo o
homem que põe a mira acima do estado em que nasceu. Eram aspirações
vagas, intermittentes, vaporosas, umas visões legislativas e
ministeriaes, que tão depressa lhe namoravam a imaginação, como logo
se esvaeciam, ao resvalar dos primeiros olhos bonitos, que esses, sim,
amava-os elle deveras. Opiniões não as tinha; alguns escriptos que
publicara durante a quadra academica eram um complexo de doutrinas de
toda a casta, que lhe fluctuavam no espirito, sem se fixarem nunca,
indo e vindo, alçando-se ou descendo, conforme a recente leitura ou a
actual disposição de espirito.
 
Por agora militava nas fileiras do lagruismo, com ardor, dedicação
e fidelidade de bom apostolo. Não era abastado para pagar o luxo de
uma opinião lyrica; nascera pobre e não tinha parente em boa posição.
Alguns poucos recursos possuia, provenientes do seu officio de
advogado, que exercia com o amigo Luiz Alves.
 
Uma noite assistira á representação de _Othello_, palmeando até romper
as luvas, acclamando até cansar-lhe a voz, mas acabando a noite
satisfeito dos seus e de si. Terminado o expectaculo, foi elle, segundo
costumava, assistir á saida das senhoras, uma procissão de rendas,
e sedas, e leques, e veus, e diamantes, e olhos de todas as cores e
linguagens. Estevão era pontual nessas occasiões de espera, e raro
deixava de ser o ultimo que saía. Tinha agora os olhos pregados em
outros olhos, não pardos como os delle, mas azues, de um azul-ferrete,
infelizmente uns olhos casados, quando sentiu alguem bater-lhe no
hombro, e dizer-lhe baixinho estas palavras:
 
--Larga o pinto, que é das almas.
 
Estevão voltou-se.
 
--Ah! és tu! disse elle vendo Luiz Alves. Quando chegaste?
 
--Hoje mesmo, respondeu o collega; venho sequioso de musica. Vassouras
não tem Lagrua nem _Othello_...
 
--Vieste lavar a alma da poeira do caminho, disse Estevão, que, ainda
falando em prosa, cultivava as suas metaphoras poeticas. Fizeste bem;
não te perdoaria se preferisses a outra, a lambisgoia, que aqui nos
querem impingir por grande cousa, e que não chega aos calcanhares do
buço...
 
Interrompeu-se. Luiz Alves acabava de comprimentar ceremoniosamente
alguem que passava; Estevão volveu a cabeça para ver quem era. Era uma
moça, que elle não chegou a ver, porque já descia as escadas; mas tão
elegante e gentil que os olhos lhe fuzilaram de admiração.
 
--Algum namoro? perguntou ao amigo.
 
--Não; uma visinha.
 
A desfilada acabou; sairam os dous e foram dalli cear a um hotel,
seguindo depois para Botafogo, onde morava Luiz Alves, desde que
perdera a mãe, alguns mezes antes.
 
A casa de Luiz Alves ficava quasi no fim da praia de Botafogo, tendo
ao lado direito outra casa, muito maior e de apparencia rica. A noite
estava bella, como as mais bellas noites daquelle arrabalde. Havia
luar, ceu limpido, infinidade de estrellas e a vaga a bater mollemente
na praia, todo o material, em summa, de uma boa composição poetica, em
vinte estrophes pelo menos, obrigada a rima rica, com alguns exdruxulos
rebuscados nos diccionarios. Estevão poetou, mas poetou em prosa, com
um enthusiasmo legitimo e sincero. Luiz Alves, menos propenso ás cousas
bellas, preferia a mais util de todas naquella occasião, que era ir
dormir. Não o conseguiu sem ouvir ao hospede tudo quanto elle pensava
ácerca daquelle «pinto, que era das almas,» aquelles olhos azues, «
profundos como o ceu,» exclamava Estevão.
 
Afinal dormiram ambos; mas, ou fosse porque os taes olhos o
perseguissem, ainda em sonhos, ou porque extranhasse a cama, ou por que
o destino assim o resolvera, a verdade é que Estevão dormiu pouco, e,
cousa rara, accordou logo depois de apparecer a arraiada.
 
A manhã estava fresca e serena; era tudo silencio, mal quebrado
pelo bater do mar e pelo chilrear dos passarinhos nas chacaras
da visinhança. Estevão, amuado por não poder conciliar o somno,
resolvera-se a ir ver a manhã, de mais perto. Ergueu-se de manso,
lavou-se, vestiu-se, e pediu que lhe levassem café ao jardim, para onde
foi sobraçando um livro que acaso topou ao pé da cama.
 
O jardim ficava nos fundos da casa; era separado da chacara visinha
por uma cerca. Relanceando os olhos pela chacara, viu Estevão que era
plantada com esmero e arte, assaz vasta, recortada por muitas ruas
curvas e duas grandes ruas rectas. Uma destas começava das escadas de
pedra da casa e ia até o fim da chacara; a outra ia da cerca de Luiz
Alves até á extremidade opposta, cortando a primeira no centro. Do
lugar em que ficava Estevão só a segunda rua podia ser vista de ponta a
ponta.
 
Sentou-se o bacharel em um banco que alli achou, recebeu a chicara de
café, que o escravo lhe trouxe dahi a pouco, accendeu um charuto e
abriu o livro. O livro era uma _Pratica Forense._ Demos-lhe razão ao
despeito com que o fechou e atirou ao chão, contentando-se com o canto
dos passaros e o cheiro das flores, e a sua imaginação tambem, que
valia as flores e os passaros.
 
Deus sabe até onde iria ella, com as azas faceis que tinha, se um
incidente lh'as não colhera e fizera descer á terra. Da casa visinha
saíra um roupão,--elle não viu mais que um roupão,--e seguira pela
rua que enfrentava com casa, a passo lento e meditativo. Estevão, que
adorava todos os roupões, fossem ou não meditativos, deu as graças á
Providencia, pela boa fortuna que lhe deparava, e afiou os olhos para
contemplar aquella graciosa madrugadora. Graciosa, ainda elle não sabia
se o era; mas assentou que devia de ser, justamente porque desejava que
o fosse.
 
A deliciosa paisagem ia ter emfim uma alma; o elemento humano vinha
coroar a natureza.
 
Ergueu-se Estevão, de toda a sua estatura elevada e gentil, para ver
melhor,--e ser visto, digamos a verdade toda,--aquella desconhecida
visinha, que devia ser por força a que Luiz Alves comprimentara
no theatro. Acteon christão e modesto, não sorprehendia Diana no
banho, mas ao sair delle; todavia, não palpitava menos de commoção e
curiosidade.
 
O roupão ia andando.
 
 
 
 
III
 
 
Ao pé da cerca.
 
 
A primeira cousa que Estevão pôde descobrir é que a visinha era
moça. Via-lhe o perfil, em cada aberta que deixavam as arvores, um
perfil correcto e puro, como de esculptura antiga. Via-lhe a face côr
de leite, sobre a qual se destacava a côr escura dos cabellos, não
penteados de vez, mas frouxamente atados no alto da cabeça, com aquelle
deleixo matinal que faz mais bellas as mulheres bellas. O roupão,--de
musselina branca,--finamente bordado, não deixava ver toda a graça do
talhe, que devia ser e era elegante, dessa elegancia que nasce com a
creatura ou se apura com a educação, sem nada pedir, ou pedindo pouco
á thesoura da costureira. Todo o collo ia coberto até o pescoço, onde
o roupão era preso por um pequeno broche de saphira. Um botão, do
mesmo mineral, fechava em cada pulso as mangas estreitas e lisas, que
rematavam em folhos de renda.
 
Estevão, da distancia e na posição em que se achava, não podia ver
todas estas minucias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu
dever de contador de historias. O que elle viu, além do perfil, dos
cabellos, e da tez branca, foi a estatura da moça, que era alta, talvez
um pouco menos do que parecia com o vestido roçagante que levava. Pôde
ver-lhe também um livrinho, aberto nas mãos, sobre o qual pousava os
olhos, levantando-os de espaço a espaço, quando lhe era mister voltar a
folha, e deixando-os cair outra vez para embeber-se na leitura.
 
Ia assim andando, sem cuidar que a visse alguem, tão serena e grave,
como se atravesára um salão. Estevão, que não tirava os olhos della,
mentalmente pedia ao ceu a fortuna de a ter mais proxima, e anciava por
vel-a chegar á rua que lhe ficava diante. Comtudo, era difficil que lhe
parecesse mais formosa do que era, vista assim de perfil, a escapar
por entre as arvores. O jovem bacharel, par não perder o sestro dos
primeiros tempos, avocava todas as suas reminiscencias litterarias; a
desconhecida foi successivamente comparada a um seraphim de Klopstock,
a uma fada de Shakespeare, a tudo quanto na memoria delle havia mais
aereo, transparente, ideial.
 
Em quanto elle trabalhava o espirito nestas comparações poeticas,
não descabidas, se quizerem, em tal lugar, e ao pé de tão graciosa
creatura, ella seguia lentamente e chegara á encrusilhada das duas
grandes ruas da chacara. Estevão esperava que voltasse á direita, isto
é, que viesse para o lado delle, mas sobretudo receiava que seguisse
pela mesma rua adiante e se perdesse no fundo da chacara. A moça
escolheu um meio termo, voltou á esquerda, dando as costas ao seu
curioso admirador e continuando no mesmo passo vagaroso e regular.
 
A chacara não era em demasia grande; e por mais lento que fosse o passo
da madrugadora, não gastaria ella immenso tempo em percorrer até o fim
aquella porção da rua em que entrára. Mas alli, ao pé daquelle coração
juvenil e impaciente, cada minuto parecia, não direi um seculo,--seria
abusar dos direitos do estylo,--mas uma hora, uma hora lhe parecia, com
certeza.
 
A moça entretanto, chegando ao fim, parou alguns instantes, pousou a
mão nas costas de um banco rustico que alli havia e enfrentava com
outro, collocado na extremidade opposta. A outra mão descaira-lhe, e os

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