2016년 9월 22일 목요일

a mao e luva 4

a mao e luva 4


Estevão do logar onde estava podia examinar-lhe as feições, sem ser
visto por ella; mas foi justamente do que não cuidou, desde que
lh'as pôde distinguir. Valia a pena, entretanto, contemplar aquelles
grandes olhos castanhos, meio velados pelas longas, finas e bastas
pestanas, não maviosos nem quebrados, como elle os cuidara ver, mas
de uma belleza severa, casta e fria. Valia a pena admirar como elles
communicavam a todo o rosto e o toda a figura um ar de magestade
tranquilla e senhora de si. Não era ella uma dessas bellezas que, ao
mesmo tempo, que subjugam o coração, accendem os sentidos; falava á
intelligencia primeiro do que ao coração, tanto a arte parecia haver
collaborado com a natureza naquella creatura, meia estatua e meia
mulher.
 
Tudo isto podia ver e considerar o nosso bacharel. A verdade, porém, é
que a nenhuma destas cousas attendeu. Desde que distinguíra as feições
de moça, ficou como tomado de assombro, com os olhos parados, a bocca
entreaberta, fugindo-lhe a vida e o sangue todo para o coração.
 
A moça chegara á cerca; esteve de pé algum tempo, olhou em derredor
e por fim sentou-se no banco que alli havia, dando as costas para o
jardim de Luiz Alves. Abriu novamente o livro, e continuou a leitura
do ponto em que a deixara tão só comsigo, tão embebida no livro que
tinha deante, que não a despertou o rumor, aliás sumido, dos passos de
Estevão nas folhas seccas do chão. Teria percorrido meia pagina, quando
Estevão, reclinando-se sobre a cerca, e procurando abafar a voz para
que só chegasse aos ouvidos della, proferiu este simples nome:
 
--Guiomar!
 
A moça soltou um grito de sorpreza e de susto, e voltou-se sobresaltada
para o lado donde partira a voz. Ao mesmo tempo levantára-se. A
impressão que lhe produzira, e não sei se tambem algum ar de colera que
lhe notasse no rosto; e além de tudo, o remorso de não haver suffocado
aquelle grito de seu coração, fez com que Estevão, quasi no mesmo
instante murmurasse em tom de súpplica:
 
--Perdoe-me; foi uma scentelha do passado que estava debaixo da cinza:
apagou-se de todo.
 
Guiomar,--sabemos agora que era este o seu nome,--olhou séria e
quieta para o seu mal aventurado interruptor, dous longos e mortaes
minutos. Estevão, confuso e vexado, tinha os olhos em terra; o coração
palpitava-lhe com força, como a despedir-se da vida. A situação ora em
demasia afflictiva e embaraçosa para que se podesse prolongar mais.
Estevão ia corteja-la e despedir-se; mas a moça, com um sorriso de mais
piedade que affecto, murmurou:
 
--Está perdoado.
 
Caminhou para a cerca e estendeu-lhe a mão, que elle apertou,--apertou
não é bem dito,--em que elle tocou apenas, o mais ceremoniosamente que
podia e devia naquella situação.
 
E depois ficaram a olhar um para o outro, sem se atreverem a dizer
nada, nem a sair dalli, a verem ambos o espectro do passado, aquelle
tão amargo passado para um delles. Guiomar foi a primeira que rompeu o
silencio, fazendo a Estevão uma pergunta natural, como não podia deixar
de ser naquellas circumstancias mas ainda assim, ou por isso mesmo, a
mais acerba que elle podia ouvir:
 
--Ha dous annos que nos não vemos, creio eu?
 
--Ha dous annos, murmurou Estevão abafando um suspiro.
 
--Já está formado, não? Lembra-me ter lido o seu nome....
 
--Estou formado. Sabe que era o desejo maior de minha tía...
 
--Não a vejo ha muito tempo, interrompeu Guiomar; eu saí do collegio,
logo depois que o senhor seguiu para S. Paulo. Saí a convite da
baroneza, minha madrinha, que lá foi buscar-me um dia, allegando que eu
já não tinha que aprender, e que me não convinha ensinar.
 
--De certo, assentiu Estevão.--Minha tia é que não deixou nem podia
deixar de ensinar; acabou no officio.
 
--Acabou?
 
--Morreu.
 
--Ah!
 
--Morreu ha cerca de um anno.
 
--Era uma boa creatura, continuou Guiomar, depois de alguns instantes
de silencio, muito carinhosa e muito prendada. Devo-lhe o que
aprendi..., Está admirando esta flor?
 
Estevão, apanhado em flagrante delicto de admiração, não da flor mas da
mão que a sustinha,--uma deliciosa mão, que devia ser por força a que
se perdeu da Venus de Milo, Estevão balbuciou:
 
--Com effeito, é linda!
 
--Ha muita flor bonita aqui na chacara. A baroneza tem immenso gesto a
estas cousas, e o nosso jardineiro é homem que sabe do seu officio.
 
Aquelle natural acanhamento da primeira occasião foi desapparecendo aos
poucos, e a conversa veiu a ser, não tão familiar, como outr'ora, mas
em todo o caso menos fria do que a principio estivera. Havia, comtudo,
uma differença entre os dous: elle, sem embargo do desembaraço,
sentia-se abalado e commovido; ella, porém, vencido o sobresalto do
principio, mostrava-se tranquilla e fria, sempre polida e grave,
risonha ás vezes, mas de um risonho á flor do rosto, que não lhe
alterava a serenidade e compostura.
 
O sitio e a hora eram mais proprios de um idylio, que de uma fria e
descolorida pratica. Um ceu claro e limpido, um ar puro, o sol a coar
por entre as folhas uma luz ainda frouxa e tepida, a vegetação em
derredor, todo aquelle reviver das cousas parecia estar pedindo uma
egual aurora nas almas. Estas é que deviam falar alli a sua lingua
dellas, amorosa e candida, em vez da outra, cortez, elegante e rigida,
que a nenhum delles desprazia, de certo, mas que era muito menos
volontaria nos labios de Estevão.
 
Guiomar falava com certa graça, um pouco hirta e pausada, sem viveza,
nem calor.
 
Estevão, que a maior parte do tempo ficara a ouvil-a, observava entre
si que as maneiras da moça não lhe eram desnaturaes, ainda que podiam
ser calculadas naquella situação. A Guiomar que elle conhecera e amara
era o embryão da Guiomar de hoje, o esboço do painel agora perfeito;
faltava-lhe outr'ora o colorido, mas já se lhe viam as linhas do
desenho.
 
A conversa durou cerca de tres quartos de hora, uma migalha de tempo
para elle, que desejara muito mais. Mas era preciso acabar; ella foi a
primeira a dizer-lh'o.
 
--O senhor fez-me perder muito tempo. Ha talvez uma hora que estamos
aqui a conversar. Era natural, depois de dous annos. Dous annos! Mas o
que não era natural, continuou ella mudando de tom, era atrever-me a
falar com un estranho neste _déshabillé_ tão pouco elegante...
 
--Elegantissimo, pelo contrario.
 
--O senhor tem sempre um comprimento de reserva: vejo que não perdeu
o tempo na academia. Vou-me embora. São horas da baroneza dar o seu
passeio pela chacara.
 
--Será aquella senhora que alli está no alto da escada? perguntou
Estevão.
 
--É ella mesma, respondeu Guiomar. Está á espera que lhe vá dar o braço.
 
E com um gesto friamente fidalgo, estendeu a mão a Estevão, dizendo:
 
--Passe bem, senhor doutor, estimei vêl-o.
 
Estevão tocou-lhe levemente na mão, fina e macia, e inclinou-se
respeitoso. A moça caminhou para casa. Elle acompanhou-a com os olhos,
admirando a gentileza com que ella, desta vez a passo accelerado,
resvalava por entre as arvores até subir as escadas da casa. Viu-a
dar o braço á madrinha, descerem e seguirem vagarosamente pelo mesmo
caminho por onde Guiomar seguira da primeira vez.
 
Estevão ainda ficou algum tempo encostado á cerca, na esperança de que
ella olhasse ou dirigisse os passos para aquelle lado; ella porém,
passou indifferente, como se nem da existencia delle soubera. Estevão
retirou-se dalli cabisbaixo e triste, batido de contrários sentimentos,
cheio de uma tristeza e de uma alegria que mal se combinavam, e por
cima de tudo isso o éco vago e surdo desta interrogação:
 
--Entro num drama ou saio de uma comedia?
 
 
 
 
IV
 
 
Latet anguis.
 
 
O passeio da baroneza durou pouco mais de meia hora. O sol começava
a aquecer, e apesar de ser bastante sombreada a chacara, o calor
aconselhava á boa senhora que se recolhesse. Guiomar deu-lhe o braço, e
ambas, seguindo pelo mesmo caminho, guiaram para casa.
 
--Parece muito tarde, Guiomar, disse a baroneza ao cabo de alguns
segundos.
 
--E é, madrinha. Demorei-me hoje mais do que costumo, por causa de um
encontro que tive aqui na chacara.
 
--Um encontro?
 
--Um homem.
 
--Algum ladrão? perguntou a madrinha parando.
 
--Não, senhora, respondeu Guiomar sorrindo, não era ladrão. A minha
mestra de collegio... sabe que morreu?
 
--Quem disse isso?
 
--O sobrinho, o tal sugeito que encontrei aqui hoje.
 
--Você está zombando commigo! Um homem na chacara?
 
--Não era bem na chacara, mas no jardim do Dr. Luiz Alves. Estava
encostado á cerca; trocámos algumas palavras.
 
A baroneza olhou para ella alguns segundos.
   

댓글 없음: