2016년 9월 22일 목요일

a mao e luva 6

a mao e luva 6


A primeira vez que esta gravidade da menina se lhe tornou mais patente
foi uma tarde, em que ella estivera a brincar no quintal da casa. O
muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da chacara
pertencente a uma casa da visinhança. A fenda era recente; e Guiomar
acostumára-se a ir espairecer alli os olhos, já serios e pensativos.
Naquella tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobiçar
talvez as doces fructas amarellas que lhe pendiam dos ramos, viu
repentinamente apparecer-lhe deante, a cinco ou seis passos do lugar em
que estava, um rancho de moças, todas bonitas, que arrastavam por entre
as arvores os seus vestidos, e faziam luzir aos ultimos raios do sol
poente as joias que as enfeitavam. Ellas passaram alegres, descuidadas,
felizes; uma ou outra lhe dispensou talvez algum affago; mas foram-se,
e com ellas os olhos da interessante pequena, que alli ficou largo
tempo absorta, alheia de si, vendo ainda na memoria o quadro que
passára.
 
A noite veiu, a menina recolheu-se pensativa e melancolica, sem nada
explicar á solicita curiosidade da mãe. Que explicaria ella, se mal
podia comprehender a impressão que as cousas lhe deixavam? Mas, como
a mãe entristecesse com aquillo, Guiomar domou o proprio espirito e
fez-se tão jovial como nos melhores dias.
 
Esta era ainda outra feição da menina; tinha uma força de vontade
superior aos seus annos. Com ella, e a viveza intellectual que Deus lhe
dera, logrou aprender tudo o que a mãe lhe ensinara, e melhor ainda
do que ella o sabia, desde que o tempo lhe permittiu desenvolver os
primeiros elementos.
 
Aos trese annos ficou orphã; este fundo golpe em seu coração, foi o
primeiro que ella verdadeiramente pode sentir, e o maior que a fortuna
lhe desfechou. Já então a madrinha a fizera entrar para um collegio,
onde aperfeiçoava o que sabia e onde lhe ensinavam muita cousa mais.
 
Vivia ainda então a filha de baroneza, uma interessante creança de
trese annos, que era toda a alma e encanto de sua mãe. Guiomar visitava
a casa da madrinha; a edade quasi egual das duas meninas, a affeição
que as ligava a belleza e meiguice de Guiomar, a graciosa compostura
de seus modos, tudo apertou entre a madrinha e a afilhada os laços
puramente espirituaes que as uniam antes. Guiomar correspondia aos
sentimentos daquella segunda mãe; havia talvez em seu affecto, aliás
sincero, um tal encarecimento que podia parecer simulação. O affecto
era espontaneo; o encarecimento é que seria voluntário.
 
Tinha a moça dezeseis annos quando passou para o collegio da tia de
Estevão, onde pareceu á baroneza se lhe poderia dar mais apurada
educação. Guiomar manifestára então o desejo de ser professora.
 
--Não ha outro recurso, disse ella á baroneza quando lhe confiou esta
aspiração.
 
--Como assim? perguntou a madrinha.
 
--Não ha, repetiu Guiomar. Não duvido, nem posso negar o amor que
a senhora me tem; mas a cada qual cabe uma obrigação, que se deve
cumprir. A minha é... é ganhar o pão.
 
Estas ultimas palavras passaram-lhe pelos lábios como que á força.
O rubor subiu-lhe ás faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de
vergonha.
 
--Guiomar! exclamou a baroneza.
 
--Peço-lhe uma cousa honrosa para mim, respondeu Guiomar com
simplicidade.
 
A madrinha sorriu e approvou-a com um beijo,--assentimento de boca, a
que já o coração não respondia, e que o destino devia mudar.
 
Pouco tempo depois padeceu a baroneza o golpe quasi mortal a que
alludiu no capitulo anterior. A filha morreu de repente, e o inopinado
do desastre quasi levou a mãe á sepultura.
 
A affeição de Guiomar não se desmentiu nessa dolorosa situação. Ninguém
mostrou sentir mais do que ella a morte de Henriqueta, ninguém consolou
tão dedicadamente a infeliz que lhe sobrevivia. Eram ainda verdes os
seus annos; todavia revellou ella a posse de uma alma egualmente terna
e energica, affectuosa e resoluta. Guiomar foi durante alguns dias a
verdadeira dona da casa; a catastrophe abatera a propria Mrs. Oswald.
 
O coração da pobre mãe ficára tão vasio, e a vida lhe pareceu tão agra
e deserta sem a filha, que ella morreria talvez de saudade, se não fora
a presença de Guiomar. Nenhuma outra creatura poderia preencher, como
esta, o logar de Henriqueta. Guiomar era já meia filha da baroneza as
circumstancias, não menos que o coração, tinham-n'as destinado uma para
a outra. Um dia, em que a afilhada fora visitar a madrinha, esta lhe
disse que a iria em breve buscar para sua casa.
 
--Você será a filha que eu perdi; elle não me amou mais, nem eu já
agora teria outra consolação.
 
--Oh! madrinha! exclamou Guiomar beijando-lhe as mãos.
 
A baroneza estava assentada; Guiomar ajoelhou-se-lhe aos pés e poz-lhe
a cabeça no regaço. A boa mãe curvou-se e beijou-lh'a ternamente,
com os olhos naquella filha que os successos lhe haviam dado, e o
pensamento no ceu, onde devia estar a outra, que Deus lhe dera e levou
para si.
 
* * * * *
 
Pouco depois estabeleceu-se Guiomar definitivamente em casa da
madrinha, onde a alegria reviveu, gradualmente, graças á nova
moradora, em quem havia um tino e sagacidade raros. Tendo presenciado,
durante algum tempo, e não breve, o modo de viver entre a madrinha e
Henriqueta, Guiomar poz todo o seu esforço em reproduzir pelo mesmo
teor os habitos de outro tempo, de maneira que a baroneza mal pudesse
sentir a ausencia da filha. Nenhum dos cuidados da outra lhe esqueceu,
e se em algum ponto os alterou foi para augmentar-lhe novos. Esta
intenção não escapou ao espirito da baroneza, e é superfluo dizer que
deste modo os vinculos do affecto mais se apertaram entre ambas.
 
Ao mesmo tempo que ia provando os sentimentos de seu coração, revelava
a moça, não menos, a plena harmonia de seus instinctos com a sociedade
em que entrára. A educação, que nos últimos tempos recebera, fez muito,
mas não fez tudo. A natureza incumbira-se de completar a obra,--melhor
diremos, começal-a. Ninguem adivinharia nas maneiras finamente
elegantes daquella moça, a origem mediana que ella tivera; a borboleta
fazia esquecer a chrysalida.
 
 
 
 
VI
 
 
O post-scriptum.
 
 
Aquelle conselho de Luiz Alves, na fatal noite de dous annos antes, não
ha duvida que era judicioso e devera ter ficado no espirito de Estevão.
Não convinha reler a carta, sob pena de lhe achar um _post-scriptum._
Estevão era curioso de epistolas; não pode ter-se que não abrisse
aquella. O _post-scriptum_ lá estava no fim.
 
Vindo á linguagem natural, Estevão saiu do jardim de Luiz Alves com
o coração meio inclinado a amar de novo a mulher que tanto o fizera
padecer um dia. Daqui concluirá alguem que elle verdadeiramente não
deixára de a amar Póde ser; havia talvez debaixo da cinza uma faisca,
uma só, e essa bastava a repetir o incendio. Mas fosse de um ou de
outro modo, o certo é que Estevão saiu dalli com o príncipio do amor no
coração.
 
Todo aquelle dia foi de alvoroço e agitação para elle, que não se
resignou logo, antes buscou reagir contra a entrada da paixão nova. A
tentativa era sincera; as forças é que eram escassas. Elle desviava de
si a imagem da moça; ella, porém perseguia-o, tenaz, como se fora um
remorso, fatal como a voz de seu destino.
 
Estevão nada disse a Luiz Alves do encontro e da conversa qui tivera
com a moça no jardim; e não lh'o escondeu por desconfiança, mas por
vergonha. Que lhe diria porém elle que o não tivesse visto e percebido
Luiz Alves? Da janella de seu quarto, que dava para o jardim, enfiando
os olhos pela fresta das cortinas pôde observa-los durantes aquelles
tres quartos de hora de innocente palestra. O espectaculo não o
divertiu muito; Luiz Alves achou um pouco atrevida a escolha do logar.
 
A circumstancia de os ver juntos chamou-lhe a attenção para a
coincidencia do nome da visinha com o da antiga namorada do collega;
era naturalmente a mesma pessoa.
 
--Vai contar-me tudo, pensou Luiz Alves quando viu o collega
affastar-se da cerca e dirigir os passos para casa.
 
Estevão, como disse, foi discreto. Vinha preocupado, muito outro do que
entrára na vespera, a ler-se-lhe no rosto alguma cousa mais séria do
que elle proprio costumava ser.
 
Tinha Estevão contra si o passado e o futuro. O presente, sim,
defendia-o; elle sentia que alguma cousa o distanciava de Guiomar.
Mas o passado falava-lhe de todas as doces recordações,--as menos
amargas,--e a memoria quasi não sabe de outras quando relembra o
que foi. O futuro acenava-lhe com as suas esperanças todas, e basta
dizer que eram infinitas. Além disso, a Guiomar que elle via agora,
surgia-lhe no meio de outra atmosphera,--a mesma que o seu espirito
almejava respirar; e apparecia-lhe para fugir logo. Sobre tudo isto
o obstaculo, aquella porta fechada, que bem podia ser a da _cittá
dolente_, mas que em todo o caso elle quizera ver franqueada ás suas ambições.   

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