2016년 9월 22일 목요일

a mao e luva 9

a mao e luva 9



E Guiomar ia de novo affastar-se, quando Estevão, receiando perder a
occasião que a fortuna lhe offerecia, disse de longe com voz triste e
supplice:
 
--Attenda-me um só munito!
 
--Não um, mas dez--respondeu a moça estacando o passo e voltando o
rosto para elle--e serão provavelmente os ultimos em que falaremos
a sós. Cedo á commiseração que me inspira o seu estado; e pois que
rompeu o longo e expressivo silencio em que se tem conservado até hoje,
concedo-lhe que diga tudo, para me ouvir uma só palavra.
 
A moça falára n'um tom secco e imperioso, em que mais dominava a
impaciencia do que a commiseração a que vinha de alludir. O coração de
Estevão batia-lhe como nunca,--como o coração costuma bater nas crises
de uma angustia suprema. Todo aquelle castello de vento, laboriosamente
construido nos seus dias de illusão, todo elle se esboroava e desfazia,
como vento que era. Estevão arrependera-se do impulso que o levára a
violar ainda uma vez o segredo dos seus sentimentos intimos, a abrir
mão de tantas esperanças, alimentadas com o melhor do seu sangue
juvenil.
 
Alguns instantes decorreram em que nem um nem outro falou; ambos
pareciam medir-se, ella serena e quieta, elle tremulo e gelado.
 
--Uma só palavra, repetiu Estevão, e essa adivinho que será de
desengano. Embora! Pois que me atrevi a dizer-lhe alguma cousa, força
é que lhe diga tudo,--feliz, se me restar, ao menos, a maior fortuna a
que já agora posso aspirar,--o seu remorso.
 
Guiomar ouvira-o tranquillamente; a ultima palavra fel-a estremecer.
Sorriu, entretanto, de um sorriso um pouco voluntario e esperou.
 
A narração foi longa, tanto quanto o permittiam a occasião, o logar
e a pessoa; durou apenas dez minutos. Estevão nada lhe escondeu, nem
o amor que lhe tivera out'rora, nem o que agora lhe renascia, mais
violento que o primeiro; disse-lhe as dores que curtira, as esperanças
que afinal lhe enfloravam a alma, tudo quanto emprehendêra para ler a
ventura de a contemplar de perto, de gozar naquelle escasso ponto da
terra a maior de todas as bem aventuranças.
 
Tal é a transcripção, não litteral, mas fiel, do que disse Estevão
durante esse dez minutos. As palavras caíam-lhe tremulas e a voz
saía-lhe sumida, em parte por que elle forcejava em a abafar, afim
de que o não ouvissem, em parte porque a commoção lhe comprimia a
garganta. A dor era visivelmente sincera; a eloquência vinha do coração.
 
Guiomar não ouvira tudo com a mesma expressão; a principio um meio riso
parecia desabrochar-lhe os labios, mas não tardou que pelo rosto abaixo
lhe caísse um veu mais compassivo e humano. Havia nella impaciencia e
anciedade de acabar, de sair dalli; era, sem duvida, o receio de que a
ausência se prolongasse de maneira que inspirasse suspeitas. Mas havia
também commiseração e piedade.
 
--Nenhuma culpa lhe pode caber do mal que tenho padecido, disse Estevão
concluindo; sobretudo agora, só eu, só a minha cabeça é a causa unica
de tudo. Parecia-me ver o contrario do que existia; cheguei a suppor
que havia em seu coração alguma cousa que não era a total indifferença;
vejo que foi tudo illusão.
 
O tom em que elle falára era o mesmo das palavras que ahi ficam, todas
humildes e resignadas, sem o menor laivo de queixa ou de reproche. Uma
submissão assim devia por força commover a uma mulher amada. Guiomar
falou-lhe sem azedume:
 
--Era illusão, disse ella. O sentimento que me acaba de revellar
inteiro, ninguem o recebe ou nutre de vontade; a natureza o infunde ou
nega. Posso eu ter culpa disso?
 
--Nenhuma.
 
--Nem o senhor tambem, e espero que esta mutua justiça avigore o
sentimento de estima devemos ter um para com o outro. Mas estima
apenas, não póde haver outra cousa,--da minha parte ao menos. É pouco,
de certo...
 
--Não é pouco, é cousa differente, interrompeu Estevão.
 
--Mas não espere nada mais, concluiu Guiomar sem ouvir a interrupção.
 
Estevão abriu a bocca para falar, mas não achou palavra que lhe
dissesse o que sentia; levou a mão ao coração, que batia fortemente, e
ficou a olhar para ella com os olhos seccos e parados, a voz extincta,
como se a alma lhe fugira toda. Era claro, depois daquelle desengano,
que lhe cumpria não voltar alli mais, pelo menos com a assiduidade da
esperança; e assim era que a unica e amarga satisfação de a ver, nem
essa já agora se lhe consentia.
 
--Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de
pausa, seja homem, vença-se a si proprio; seu grande defeito é ter
ficado com a alma creança.
 
--Talvez, respondeu o moço suspirando.
 
--E adeus. Falamos a sós, mais do que convinha; não sei se outra
consentiria nisto. Mas eu não só reconheço os seus sentimentos de
respeito, como desejo que estas poucas palavras trocadas agora ponham
termo a aspirações impossiveis.
 
Guiomar estendeu-lhe a mão, em que elle tocou levemente.
 
A baroneza appareceu, entretanto, a algumas braças de distancia; vinha
encostada ao braço do sobrinho, que lhe falava, mas a quem ella já não
ouvia. Tinha os olhos cravados nos dous interlocutores de ha pouco.
A moça apenas vira de longe a madrinha, deu affoutamente o braço a
Estevão, e seguiram ambos a encontrar-se com ella; o rosto de Guiomar
não revelava nada; o de Estevão vinha perturbado e abatido. A baroneza
franziu a testa:
 
--Jorge, disse ella em voz baixa, precisamos conversar.
 
 
 
 
IX
 
 
Conspiração.
 
 
A baroneza, quando se lhe approximaram os dous interlocutores da cerca,
mais receiosa ficou e mais perplexa. Guiomar vinha risonha e até
gracejadora; mas o abatimento de Estevão era tão mal disfarçado, que de
duas uma,--ou ella acabava de lhe dar o ultimo desengano,--ou aquillo
era apenas um arrufo serio, que o moço não podia ou não queria esconder
de olhos extranhos. Isto é o que a baroneza pensou. O que ella concluiu
foi que, em todo caso, urgia tentar alguma cousa em favor do maior,--do
unico senho da sua velhice.
 
Jorge não percebeu a verdadeira razão porque a tia lhe dissera ser
necessário conversar com ella; imaginou que se trataria de Guiomar e
Estevão,--mas estava longe de suppor todo o alcance da entrevista.
 
A entrevista não pode ser logo nesse dia; as visitas ficaram alli
até tarde, e a noite foi a mais agradavel e distrahida de todas as
noites; Guiomar, sobretudo, esteve como nunca, jovial e interessante.
A serenidade parecia morar-lhe na alma e reflectir-se-lhe no
rosto,--tantas vezes pensativo, mas agora tão frio e tão nú.
 
Não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh!
sobretudo de boa vontade, porque é mister havel-a, e muita, para vir
até aqui, e seguir até o fim, uma historia, como esta, em que o autor
mais se occupa de desenhar um ou dous caracteres, e de expor alguns
sentimentos humanos, que de outra qualquer cousa, por que outra cousa
não se animaria a fazer;--não será preciso declarar ao leitor, dizia
eu, que toda aquella jovialidade de Guiomar eram punhaes que se lhe
cravavam no peito ao nosso Estevão. Elle não podia suppol-a abatida;
mas penalisada, ao menos, um pouco respeitosa para com a dor que havia
nelle, isto, sim, imaginava que sería. Mas nada disso foi, e o pobre
rapaz saiu dalli mais cedo do que pensára e quizera sair.
 
Na alcova, se elle podesse vel-a mais tarde na alcova, solitaria
e toda comsigo, sentada na poltrona rasa ao lado da cama, com os
cabellos desfeitos, os pésinhos mettidos nas chinellas de setim preto,
as mãos no regaço e os olhos vagando de objecto em objecto, como se
reproduzissem fóra as attitudes interiores do pensamento, alli não
só elle a adoraria de joelhos, mas até poderia suppor que alguma
preoccupação lhe tirava o somno e que essa era nem mais nem menos elle
proprio.
 
Talvez fosse; em parte ao menos seria elle. Guiomar não tinha um
coração tão mau, que lhe não doessem as maguas de um homem que
acertara ou desacertara de a amar. Mas fosse uma, ou fossem muitas as
causas daquella preoccupação, a verdade é que ella durou muito tempo.
Guiomar passou da poltrona á janella, que abriu toda, para contemplar
a noite,--o luar que batia nas aguas, o ceu sereno e eterno. Eterno,
sim, eterno, leitora minha, que é a mais dasconsoladora lição que nos
poderia dar Deus, no meio das nossas agitações, lutas, ancias, paixões
insaciáveis, dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e
passam comnosco, debaixo daquella azul eternidade, impassivel e muda
como a morte.
 
Pensaria nisto Guiomar? Não, não pensou nisto um minuto sequer; ella
era toda da vida e do mundo, desabrochava agora o coração, vivia
em plena aurora. Que lhe importava,--ou quem lhe chegara a fazer
comprehender esta philosophia secca e arida? Ella vivia do presente
e do futuro e,--tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambições
que lh'o enchiam,--tamanho, que bastava a occupar-lhe o pensamento,
ainda que o presente nada mais lhe dera. Do passado nada queria saber;
provavelmente havia-o esquecido.
 
A madrugada achou-a dormindo; mas os primeiros raios do sol vieram
accordal-a, na fórma do costume, para o matinal passeio com a madrinha.
Guiomar sacrificava tudo á dedicação filial de que ja dera tantas
provas. A baroneza, entretanto, estava preoccupada; o passeio foi
differente do dos outros dias.
 
Ao meio-dia metteu-se Guiomar no carro, com Mrs. Oswald, e sairam a
uma visita. A baroneza ficou só; Jorge não a deixou ficar só por muito
tempo, porque chegou dahi a pouco.
 
A baroneza não perdeu tempo em circunloquios. Apenas viu o sobrinho
interpellou-o directamente:
 
--Disseram-me, foi Mrs. Oswald quem me disse que tu gostas de Guiomar.
 
Jorge não contava muito com semelhante interrogação; todavia, não era

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